Trilha sonora

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

2º CAPÍTULO DE ORGASMOS FATAIS PARA DEGUSTAÇÃO

CAPÍTULO 2

No dia seguinte, conforme determinado pelo delegado Leandro, os policiais Douglas e Luiz aguardavam a chegada das primeiras testemunhas arroladas: o porteiro do prédio, Isadora e Mary, esta ainda bastante transtornada, porém disposta a colaborar na descoberta do assassino de sua filha. O velório seria naquela tarde, porém a família iria cremá-la, já que este era um desejo conhecido de Mariana.
A delegacia estava cheia de repórteres, pois embora a vítima não fosse uma pessoa notória, seu namorado exercia um cargo de confiança na estrutura do Governo do Estado — era assessor jurídico do Governador e não se sabia como, antes mesmo deste fato chegar à polícia, já era notícia velha na mídia.
Douglas esperava o delegado chegar enquanto observava as fotos tiradas no local do crime. Ele pensava como uma mulher jovem e bonita como aquela, poderia ter sido assassinada daquela forma e o que teria motivado tudo aquilo. Ela parecia ser uma pessoa de vida normal e não tinha anotações criminais. Entretanto, vasculhando os registros policiais, ele encontrou uma ocorrência envolvendo-a como vítima, nos seis meses anteriores ao seu assassinato. Mariana registrou uma ameaça que teria recebido por e-mail. E lendo o teor do documento, Douglas verificou que o autor — ou autora — teria escrito o seguinte: “Eu já descobri o que você faz... é questão de tempo ele saber também, sua vagabunda! O que é seu está guardadinho!”.
Douglas imprimiu o registro de ocorrência da ameaça e juntou aos autos da investigação, pois poderia ser de valia. Assim que Leandro chegou, o policial perguntou se poderia começar a ouvir as testemunhas, pois já eram nove horas da manhã e haviam marcado os depoimentos para as oito horas. Leandro concordou e pediu que Douglas fosse “adiantando”, que depois ele daria uma “lida” para ver se estava tudo certo. Acostumado já com este tipo de comportamento por parte de alguns delegados, Douglas não se surpreendeu e riu diante do olhar espantado de Luiz, dizendo para o novato:
— Tá vendo? Estuda — e bateu no ombro do rapaz, que entendeu o recado e riu de volta, balançando a cabeça.
Luiz tinha sido empossado recentemente e tinha poucos meses no cargo de inspetor de polícia. Era um jovem de 25 anos, que concluíra a faculdade de Direito recentemente e pretendia ser Promotor de Justiça ou Juiz, mas parecia se interessar bastante pelo trabalho policial. Ele tinha aquele entusiasmo dos jovens, acreditava que poderia mudar o que estava errado. Ainda não tinha visto muita coisa, nem coisas certas e nem coisas erradas, mas teve sorte em ter como parceiro um policial experiente e honesto ao seu lado, como Douglas.
Luiz se perguntava o que motivava tanto Douglas a mergulhar de cabeça naquelas investigações e percebia que o parceiro mais velho queria muito sentir que era capaz de cumprir seu dever. Ele dizia para Luiz que mesmo que tudo fosse ao final “uma grande sacanagem”, que uma parte dos colegas de profissão não quisesse nada com o trabalho, que a Justiça parecesse cada vez mais se transformar em uma utopia, ele não tinha nada a ver com isto. Sim, ele era responsável pelos seus atos e se, mesmo sozinho naquela busca pela verdade, de cem homicídios conseguisse desvendar somente cinco, estaria feliz. Pois teria cumprido seu dever e poderia dormir tranquilo. Era o que mais parecia importar para Douglas: sua consciência limpa. Luiz admirava esse homem, que apesar deste senso ético e de um lado humano forte, também tinha seus momentos de estresse... Como o próprio Douglas dizia, quando pegava o jovem policial surpreso com algumas de suas atitudes inesperadas e não tão certinhas. “Ué? Rapaz, eu também arroto, peido e cago, sabia?”
Mas ele percebia que o seu colega durão e sarcástico era bastante reservado, também, em sua vida pessoal. Tinha sido casado durante alguns anos, mas ficou viúvo, não teve filhos e não parecia ter uma namorada fixa, embora os policiais mais antigos comentassem que ele não era nada imune a um belo par de pernas. E era bastante assediado, era o típico “tira” com jeito de machão e um ar protetor que parecia atrair as mulheres. Simplesmente, às vezes, Douglas parecia tão enigmático quanto os homicidas que costumava caçar. Sim, ele parecia mesmo um caçador.
Luiz já estava sentado em frente ao seu terminal para digitar as declarações que Douglas iria tomar, quando fizeram entrar a primeira testemunha. Este era o porteiro do prédio: um senhor baixinho e meio gordinho, de bigode, nordestino e simpático, de nome José da Silva de Souza, conhecido como “Seu Zé”. Muito humilde, ele parecia ter medo de entrar na sala, sendo convidado de forma descontraída por Douglas, que não queria assustar sua primeira testemunha.
O policial começou perguntando há quanto tempo o porteiro exercia suas funções naquele prédio, se conhecia bem todos os moradores... até que o sentisse mais tranquilo para começar as perguntas sobre o dia do crime e sobre a vítima:
— O senhor trabalhou na data de ontem?
— Trabalhei sim senhor, eu trabalho de segunda a sábado.
— Qual é o seu horário de trabalho?
— Eu trabalho das oito às cinco horas da tarde, mas ontem fiz uma horinha extra, porque o porteiro que fica no turno da noite precisou chegar mais tarde.
— Então, o senhor estava na portaria quando a Sra. Mary chegou?
— Claro, eu a vi chegar e tudo. Ela sempre me cumprimenta. Eu gosto muito dela e das filhas, são umas moças muito legais e educadas.
— O senhor costumava conversar com elas?
— Às vezes, nada demais. As moças andavam sempre com pressa.  
E a Mariana? O que o senhor pode me falar sobre ela?
Uma moça tão bonita... — ele abaixou a cabeça, um pouco abalado. — Ela morava com a mãe e com o filho; o garoto também é muito educadinho. Ela saía de manhã para a faculdade... parece que tinha se formado há poucos meses, mas ainda não trabalhava não. Era advogada. Ela estava sempre muito bem vestida e perfumada.
— Sei... O senhor sabe dizer se ela tinha namorado?
Tinha sim. Um homem bem mais velho do que ela. Parece que iam morar juntos e tudo. Ele era meio fechado e acho que era sério o negócio entre os dois.
— Ela saía bastante de casa?
— Antes de este namorado aparecer ela saía muito com as amigas e com as irmãs. Parece que gostava muito de dançar. Ela dizia que gostava da “night”. É assim que elas falam, não é? Depois eu a via saindo mais com ele.
O senhor se lembra de outros namorados, antes deste atual?
— É, teve um sim... — a testemunha olhava para cima, fazendo esforço para lembrar. — Parece que foram noivos, mas não lembro nada dele. O que comentavam no prédio é que ele rompeu o noivado e nunca mais quis falar com ela, mas não sei o motivo. Ela ficou muito triste na época, me lembro bem disso.
— O senhor sabe dizer se ela tinha inimigos?
Sei não senhor. Mas acho que não devia ter não, ela parecia estar sempre tão bem, tão alegre... só ficou diferente quando terminou aquele noivado, mas acho que não foi nada demais, porque depois ela voltou ao normal.
O senhor se lembra de ter visto, na data de ontem, alguém subir até o andar da vítima, depois que a mãe dela saiu para trabalhar?Douglas olhava bem nos olhos do porteiro, que de repente empalideceu.
— Não vi não senhor... — disse ele com a voz fraca.
— O senhor sai pra almoçar?
— Meu horário de almoço é de meio-dia até uma hora, mas eu não tenho quem fique no meu lugar, então fico comendo na salinha ao lado da portaria. Fica chato comer na frente das pessoas — disse com certa vergonha.
— E dessa salinha o senhor tem visão da portaria?
Mais ou menos. Não dá pra ver muita coisa não... — ele titubeava.
— O senhor sente muita vergonha de almoçar e ser visto pelos moradores, não é? — perguntou Douglas, pressentindo o que acontecia na hora de almoço do porteiro. — Acho que ninguém gosta, concorda comigo?
Ah, tenho sim. Ainda mais que adoro uma farofinha, sabe? Fica feio... — ele fez uma careta.
— E por isso costuma fechar a porta da salinha — afirmou Douglas, pegando a testemunha de surpresa.
Eu... — o porteiro gaguejou e virou o rosto, pois o policial percebeu sua falha como profissional.
— Sem problemas, Seu Zé. Eu só preciso saber se o senhor costuma fechar a porta da salinha quando almoça... porque se fecha, com certeza não tem visão da portaria.
— Puxa vida, eu posso perder meu emprego! Eu não faço por mal, nós temos que manter aquela porta aberta. Entramos ali pra ir ao banheiro e guardar nossas coisas, se souberem que fiz isso posso até ser despedido... — ele estava quase chorando. — Nunca eu iria imaginar que alguém cometeria uma barbaridade dessas com um morador!
Calma Seu Zé, tudo bem. Luiz, me deixa dar uma olhada... — e Douglas começou a reler o que tinha sido digitado até então.
Tá, ok... vamos lá, Seu Zé — prosseguiu Douglas. — Nós apreendemos o DVD da câmera de filmagem... Ela fica ligada direto?
Fica sim. Ah, de repente vocês conseguem ver quem entrou... — disse ele, parecendo animado com tal possibilidade.
Pode ser que sim. Mas fique tranquilo, nós vamos analisar com calma. Ah, outra coisa: existe alguma outra entrada no prédio?
Tem a entrada de carros, que fica ao lado. Vocês chegaram a ver?
— É eu vi sim. Reparei quando estive lá. Essa entrada de carros tem câmeras também?
— Até tem, mas não estão funcionando. O síndico já foi cobrado pelos moradores, mas nunca manda consertar.
— Tá bom. O senhor ajudou bastante por enquanto — ele imprimiu o termo e deu para o porteiro ler.
Este franzia muito a testa enquanto lia e disse de repente:
— Nossa... quanta palavra difícil. Eu disse essas coisas é?
Douglas riu e explicou aqueles termos mais rebuscados à testemunha, que confiou no policial, assinou e saiu. Douglas voltou sua atenção para Luiz e comentou, olhando para José, que já estava distante:
— Nem comer em paz o sujeito pode. E está arriscado a perder o emprego mesmo.
— Sacanagem! — concordou Luiz.
— É o que eu sempre digo: é tudo sacanagem! Imagina se o autor desse crime conhecia o local e resolveu subir pela outra entrada... — disse Douglas. Depois, ele foi até a porta e chamou Isadora, que estava acompanhada da mãe.
Mary queria entrar com a filha, sendo gentilmente impedida pelo inspetor, que lhe explicou que não poderiam prestar depoimento juntas, mesmo sendo mãe e filha. A postura do policial não agradou em nada a matriarca.
— Como, não posso entrar? É sobre o assassinato da minha filha que nós estamos falando e eu só tenho interesse em descobrir a verdade! — dizia ela.
Mesmo sofrendo e não falando em tom alto a mulher parecia um tanto arrogante, o que não desconcertou Douglas. Ele manteve sua posição e pediu que ela aguardasse ser chamada. Mary, então, sentou-se na sala de espera e anotou o telefone da Corregedoria de Polícia, impresso em um cartaz. Ela era observada por Douglas, que comentou com Luiz:
— Mais uma que vai tentar nos ferrar só porque estamos trabalhando da forma certa. Mas, vamos dar uma folga pra ela, está totalmente desconcertada. Vai cremar o corpo da filha hoje.
— Ah, eu escutei ela comentando. Parece que vão lançar as cinzas ao mar — disse Luiz.
Isadora aguardava os policiais e quando estes voltaram à sala para a tomada de declarações, ela esticou um papel com anotações e entregou a Douglas, dizendo serem os dados que possuía do namorado de Mariana:
— O nome dele é Rodolfo Mendonça Carvalho, mora no Recreio dos Bandeirantes... Ah, e também tem o telefone dele aí. Ele mesmo me passou esses dados... está transtornado com o que aconteceu.
— Muito obrigado, eu vou entrar em contato com ele ainda hoje. Mas ele poderia ter vindo espontaneamente — disse Douglas, expressando sua opinião.
Um namorado, praticamente em união estável, segundo diziam, transtornado, mas que não se deu ao trabalho de comparecer à delegacia... soa a algo frio e distante, no mínimo indiferente” — pensou o desconfiado policial.
— Ele não esteve com a minha irmã ontem. Ela pediu que ele a procurasse depois, pois ainda estava um pouco inchada da cirurgia e queria que ele a visse somente quando estivesse “linda e zero quilômetro. Ela era muito vaidosa.
— As mulheres são — respondeu Douglas.
— Eu acho que a morte da minha irmã pode ter a ver com ele, com o Rodolfo... — Isadora parecia ansiosa para falar.
— É mesmo, como assim? — Douglas percebeu que deveria deixar Isadora falar sem interrompê-la, ao contrário do que fez com o porteiro.
Luiz percebia essas mudanças no inspetor veterano, ele que sempre dizia que as pessoas eram diferentes. “Você não pode usar a mesma técnica com todas”, lembrava Luiz. “Às vezes, deve-se até mesmo abolir a técnica”.
Antes de Isadora dar início ao seu relato, o delegado Leandro entrou na sala com uma xícara de café nas mãos. E, sorridente, perguntou a Douglas, ao mesmo tempo olhando para Isadora, alheio ao estado de tensão dela:
— E aí, como estamos?
Douglas pensou em como o seu superior, apesar de não ser má pessoa, sempre aparecia nos momentos errados e da pior forma possível. Isadora, que já não tivera uma boa impressão do delegado, olhou-o irritada e abaixou a cabeça.
— Está tudo bem Doutor — respondeu enfim Douglas —, vamos começar a ouvir a senhora Isadora.
Então, você já sabe... se precisar de mim, estou na sala do delegado titular — disse Leandro rapidamente, olhando de soslaio para as pernas de Isadora. Assim como a falecida irmã, ela era uma mulher bonita e trabalhava como modelo, mas também não era uma pessoa famosa.
Douglas sentou-se, indagou a Isadora sobre o que ela tinha acabado de dizer e ela começou a explicar:
— Inspetor, minha irmã iniciou um romance com o Rodolfo há cerca de um ano e meio... quer dizer, na verdade não, eles já estavam juntos há quase dois anos, se não me falha a memória... e iam completar dois anos de namoro em maio.
— E como eles se conheceram?
— Parece que foi uma amiga da Mariana que os apresentou. Ele ficou deslumbrado com a minha irmã, afinal de contas ela era linda.
Douglas não conseguia deixar de pensar no quanto ela parecia ser fútil, porque só se referia à irmã como uma mulher “linda e nada mais.
Começaram a sair sem compromisso, foram se conhecendo primeiro... — ele observava atentamente a testemunha — aí ela ficou tão encantada com ele, que era gentil, cavalheiro... Rodolfo a tratava como uma princesa.
— Qual é a ocupação dele?
— Ele trabalha com o Governador! — revelou orgulhosa. Ela parecia gostar disso. — Aliás, parece que isso já vazou, não é mesmo? — Isadora referia-se aos repórteres.
Parece... eles são uns urubus. Mas pode continuar, por favor.
Então... os dois iam muito bem, estavam felizes, até que uma ex-namorada do Rodolfo começou a perturbar a minha irmã. Um inferno, mulherzinha insuportável!
— Perturbava como?
Ela descobriu que ele estava namorando minha irmã, através do Facebook... aí, começou a ofender a Mariana, chamava-a de burra, de gorda, insinuava que o Rodolfo ainda tinha um caso com ela, que ele estaria traindo a minha irmã... Só baixarias.
— Ela mandava recados pra sua irmã, dizia essas coisas diretamente?
— Minha irmã vivia recebendo telefonemas ofensivos.
— Ela se identificava ou eram trotes anônimos?
— Claro que não se identificava, mas sabíamos que era ela ou alguém a mando dela. E sempre ligava de números restritos.
— Sei... — Douglas odiava mexericos entre mulheres, principalmente quando percebia que ela queria arrumar um autor a qualquer custo, movida por emoções e sentimentos de vingança contra uma rival que, ao que parecia, era apenas uma mulher implicante e inconformada pelo fato de ser trocada por outra. Mas o assunto, ainda assim, merecia atenção.
— Me diga uma coisa: alguma vez sua irmã foi ameaçada por esta rival ou por outra pessoa? — perguntou Douglas.
— Não que eu saiba. Elas se ofendiam até pela Internet, mas acho que ameaça direta não houve não. Só que a outra parecia saber tudo da vida da minha irmã... e isto assustava.
— Elas se ofendiam. Então, a sua irmã respondia à altura?
— A outra começava e ela tinha que se defender, não? Pena que não gravamos as ofensas, pois não imaginamos que isso fosse tão longe.
— O que essa mulher sabia sobre a vida de sua irmã, que parecia assustar tanto?
Bem... — Isadora parecia estar escondendo algo, mas Douglas não conseguia entender o que ela poderia querer ocultar sobre as duas rivais. — Ela sabia o que a minha irmã fazia... — seguiu ela — sabia onde ela cursava Direito, citava nomes de amigos da minha irmã fazendo trocadilhos...
— Mas isto ela pode ter descoberto no próprio site de relacionamentos, não? — o inspetor observava o semblante tenso de Isadora.
— Até pode, mas ela dava medo. Sabia os nomes dos ex-namorados de minha irmã, coisas deste tipo — dizia ela, tornando-se cada vez mais evasiva.
— Você e sua irmã eram muito íntimas? Contavam as coisas uma para a outra?
Claro. A Mariana era muito aberta comigo e com minha mãe. Aliás, ela não tinha segredos sobre sua vida. Foi essa mulher quem começou a tentar difamar minha irmã.
— Difamar? Sabe o real significado desta palavra?
— Claro que sei. Ela insinuou uma vez, que minha irmã traía o Rodolfo... Coisa de gente baixo nível, nem vale a pena — seguia Isadora, mais uma vez parecendo nítido para o inspetor que ela saía pela tangente.
— E você acha que ela pode ter matado sua irmã?
— Era a única pessoa que não gostava da Mariana. E ela tem um jeito tão frio... dava pra ver pelas suas fotos no Facebook. Tem um olhar estranho... Ela tinha inveja da minha irmã, estava na cara. Mulher ridícula, mal-amada!
— Qual foi o motivo do término do namoro de sua irmã com o namorado anterior?
— Como? — Isadora pareceu confusa.
— Sua irmã teve um namorado antes do atual, não teve?
— É, teve... mas isso é importante?
— Sim, para mim é. Você sabe o motivo?
— Nada demais, eles não estavam mais se entendendo... foi só isso. Acontece... — Isadora gesticulou com as mãos.
Douglas não conseguia saber o que estava faltando ali, ela não falava tudo.
— E qual o nome dela, você pode dizer?
No Facebook ela colocava Daniela Vidal — Isadora retirou um papel da pasta que segurava e estendeu ao policial, que olhou atento. — Aqui está a página impressa do perfil dela.
Douglas observou a foto do perfil, mas não dava pra ver direito o rosto de Daniela, pois esta colocou uma foto em que aparecia distante, numa praia. Mas dava pra ver que era uma mulher clara, de cabelos lisos na altura dos ombros e compleição física normal, nem magra e nem gorda. Isadora comentou que Daniela tinha fotos no perfil, mas depois as retirou e na época ninguém teve a ideia de copiá-las... Afinal, ninguém imaginava o que aconteceria.
— Eu sei que ela tem trinta e cinco anos, porque o próprio Rodolfo contou — completou Isadora.
— Ele costumava falar dela pra vocês?
Não. Na verdade ele falou poucas coisas e só depois que a briga das duas começou a incomodá-lo, pois minha irmã cobrava providências dele, que parecia não dar a devida importância. O Rodolfo dizia para a Mariana deixar a “Dani” pra lá, que ela era “doida” e só.
— Você sabe o que essa “Dani” faz da vida? — Douglas achou estranho ouvir a irmã da vítima se referindo à provável suspeita pelo apelido. Talvez Rodolfo a chamasse assim e isto incomodasse Mariana e sua família, pois Isadora mudou o tom de voz quando pronunciou o apelido.
— Não tenho a menor ideia — respondeu ela um tanto hesitante. — Deve ser prostituta, porque cara ela tem!
Douglas olhava para a tela do computador, aparentemente não ouvindo o que ela acabava de dizer.
Está bem Isadora. Por enquanto está bom, mas se precisar a chamaremos novamente. Eu vou imprimir o seu termo de declarações. Leia com calma e depois assine, por favor.
Isadora leu atentamente, assinou e saiu com seu andar apressado.
Douglas pediu que Mary aguardasse só mais um pouco, pois ele queria trocar ideias com o seu parceiro novato, que parecia não ter percebido uma má intenção nas declarações de Isadora. Era claro para Douglas que Isadora, embora quisesse prender o assassino de Mariana, estava sendo precipitada. Ela não conseguia dar consistência a quaisquer de suas afirmações em relação a tal “Dani”. Além disto, ela parecia se esquivar toda vez que surgia o fato daquela mulher ter dito “coisas” sobre a vítima. O que ela teria dito? Afinal de contas, se eram difamações, qual seria a razão pela qual Isadora evitava detalhar os fatos? Parecia que queria proteger a irmã morta. E a única coisa que se pode proteger em um morto, pensava Douglas, era a sua reputação.
Após falar rapidamente com Luiz sobre tais considerações, Douglas fez Mary entrar e, curiosamente, ela estava acompanhada de um advogado — embora tenha chegado à delegacia somente com a filha. O advogado se identificou como Walter Castillo e Douglas iniciou o interrogatório. Mary parecia muito cansada; ela contou sobre a rotina de sua filha e outras coisas de menor relevância, dentre as quais Isadora já havia mencionado. Em dado momento, Mary, que até então parecia um pouco distante, disse em tom agressivo:
— Eu quero aquela mulher presa! — os olhos estavam vermelhos e bem abertos, fixos nos policiais.
De que mulher a senhora está falando? — Douglas fingiu que não tinha entendido, mas sabia que ela se referia a Daniela.
— Minha filha não contou? — perguntou ela, surpresa.
— Por que a senhora não me conta?
— A desclassificada que queria tomar o noivo da minha filha. A Mariana conseguiu me dizer antes de morrer que foi ela quem a matou.
— Ela disse? — Douglas sabia que teria trabalho.
— Sim, ela sussurrou o nome dela pra mim — disse ela com um meio sorriso maldoso, fazendo Douglas se lembrar de que no local do fato, somente lhe disseram que a vítima sussurrou “foi ela”, não tendo tempo de especificar quem era “ela”. Mas parecia que Mary queria “facilitar” as coisas para a polícia, de um jeito não muito correto, o que deixou Douglas mais alerta ainda e preocupado.
— Como, exatamente, ela sussurrou?
Pelo amor de Deus! O senhor quer que eu lembre os detalhes... eu estava em estado de choque! — Mary ficava cada vez mais agitada e seu advogado a acalmava.
Douglas, embora entendesse o que aquela mulher deveria estar passando, com sua experiência profissional percebia certa teatralidade.
— A senhora me desculpe, mas é que preciso saber se sua filha chegou a dizer o nome dessa pessoa.
— Ela me disse que foi ela! — Mary exclamou, enquanto olhava irritada para o policial que permanecia inabalável.
Tudo bem, eu já entendi — disse Douglas. — Luiz, coloque que a genitora da vítima afirma ter ouvido esta dizer, em seus últimos segundos de vida, que foi Daniela quem a feriu, morrendo em seguida.
Mary ouviu o policial dizer tais palavras e olhou apreensiva para seu advogado. Este fez um gesto com a mão, pedindo para a mesma se acalmar.
— A senhora sabe me dizer se, alguma vez, a sua filha foi ameaçada pela Daniela ou por outra pessoa?
Foi sim. Ela recebeu uma ameaça por e-mail, não me lembro bem o teor, mas a pessoa a ofendia e dizia que o que era da Mariana estava guardado. A Mariana chegou a registrar isso na delegacia, mas a autoria nunca foi apurada — Mary deu um muxoxo.
— Além da senhora, a Mariana contou sobre esta ameaça a mais alguém? Às irmãs, por exemplo?
Claro, a família toda sabia. Foi a Isadora quem acompanhou a irmã na delegacia pra fazer o registro de ocorrência.
Douglas olhou discretamente para Luiz, que entendeu ao que ele se referia quando disse que Isadora estava sendo evasiva. Ela garantiu que não sabia sobre a irmã ter sofrido ameaças, porém a mãe afirmava que ela acompanhou a outra no dia do registro. Como Isadora não se lembraria disto?
— E vocês acham que foi a Daniela?
— Foi na época em que ela começou a perturbar a minha filha, telefonava pra ela e a ofendia. As ofensas no e-mail eram similares, sempre tentando diminuir a Mariana, fazendo-a acreditar que não era inteligente, que não era bonita... Olha, foi um horror. Nunca vi uma pessoa tão sem classe, tão má.
— A senhora sabe o que a Daniela faz?
— Eu descobri que ela é funcionária pública, mas não sei exatamente o que faz.
— A senhora “descobriu”? Investigou-a?
Naquele momento o advogado se intrometeu:
— Na verdade, minha cliente se expressou mal...
— Doutor, não interrompa, por favor. O senhor não pode interferir no depoimento e sabe disto. — Douglas falou firme, desconcertando o advogado. Este se desculpou e permaneceu calado. — Então, como a senhora descobriu a profissão dessa pessoa? — seguiu Douglas. 
— Nós ficamos preocupados com as atitudes dela e eu pedi ao meu genro, que é policial militar, que tentasse descobrir algo sobre ela... — Mary perdia o ar arrogante e falava manso agora.
— Qual genro, o marido da Isadora?
— Ah, não. O marido da Isadora é empresário. Foi o meu outro genro, o Márcio... ele é casado com a minha caçula, a Ana.
— E ele descobriu alguma coisa?
— Não muita, mas eu tenho a data de nascimento dela aqui, o senhor quer?
— Claro... isso facilita na identificação. Mas me conte o que ele descobriu e como?
— Parece que ele viu uma ocorrência policial na qual ela era testemunha... e ali constava que ela era funcionária pública, mas nada muito específico.
— Entendo. E só isso? — ele fez uma pausa. — Estranho um policial não descobrir mais nada.
— Eu pedi a ele que deixasse pra lá. Sem querer eu comentei com uma amiga, em uma conversa no Orkut, que o Márcio estava levantando quem era a Daniela. Eu tinha esquecido de que a página de recados de minha amiga era aberta e a Daniela viu o que eu escrevi. Parecia que ela monitorava todos nós... dava medo mesmo. Aí, ela telefonou pra mim, dizendo que policial que trabalha “por fora”, investigando a vida alheia, merecia fazer uma visita à Corregedoria de Polícia. Eu fiquei com medo de que ela prejudicasse o meu genro e ele não buscou mais nada. E fiquei preocupada também, porque ela descobriu até o número do meu telefone celular.
Douglas percebia a mudança na mulher, que antes se mostrara indignada, com razão até, depois arrogante e aí, quando percebeu que cometera deslizes, se mostrou humilde e até mesmo temerosa. Estava acusando a outra mulher de forma muito direta, mas não tinha provas ou indícios para fazê-lo.
— A senhora pode me dizer os nomes dos vizinhos que a acudiram, quando ouviram o seu pedido de socorro?
— Com certeza, eu até trouxe os telefones deles. A Clara e o Sérgio moram no apartamento ao lado, nos conhecemos há muitos anos e eles foram os primeiros que viram aquela cena... — Mary não conteve as lágrimas, mas respirou fundo e aguardou o policial continuar.
E os vizinhos do apartamento que fica de frente para o seu?
Mary enxugou as lágrimas e respondeu:
Ali moram um casal e seus dois filhos, mas os pais trabalham fora e os filhos ficam com a avó materna.
— Então, só as crianças estavam em casa naquele dia.
— Provavelmente sim, além da avó.
— Eu estou perguntando, porque fiquei com pena da garota, ela parecia ter chorado bastante.
Mary sorriu tristemente e concordou com um movimento de cabeça.
— Deve ter chorado mesmo, ela gostava muito das minhas filhas. E a Mariana dava muita atenção a ela, às vezes pareciam ter a mesma idade. O garoto jogava videogame com o meu neto... — os olhos dela encheram-se de lágrimas mais uma vez. — São boas crianças, mas têm um defeito feio...
— É? Qual? — Douglas já sabia a que defeito ela se referia.
— Uma vez a mãe pegou os dois com um copo de vidro, tentando ouvir algo no apartamento do Sérgio e da Clara. Eles levaram uma surra daquelas, deu até pena.
Nossa! — Douglas imaginou o que seria dele como policial, se não fosse curioso e indiscreto. Vendo que Mary começava a soluçar de novo, sentiu que era o momento de parar. Terminou de redigir o termo e após Mary ter assinado agradeceu à matriarca, dizendo que a família seria informada sobre qualquer fato relevante, principalmente os resultados das perícias, que eram imprescindíveis para a investigação.
— Eu é que agradeço a atenção, inspetor... — disse cansada. — Eu ainda vou jogar as cinzas da minha filha mais tarde.
— Ela pediu que fosse assim, não foi?
— Ela comentou uma vez, que achava mais singelo cremar e depois lançar as cinzas ao mar. A Mariana não queria que seu corpo e seu rosto fossem “devorados”.
Douglas percebia que a vítima era narcisista, após ter conversado com a irmã e com a mãe.
Mary logo saiu e os policiais arrumavam a mesa, cheia de papéis espalhados.
— E agora Douglas? — Luiz estava cansado de tanto digitar e já era hora do almoço.
O tempo passou de uma forma que eles nem se deram conta. Douglas era detalhista em suas oitivas, não só para pegar o máximo de informações, mas também para cansar os declarantes. “Fica mais fácil pegar uma mentira ou contradição, deixando a pessoa cansada, desconfortável...”, ele dizia.
— Agora? Vamos almoçar! — respondeu Douglas, que se alongou, pois também estava muito cansado. — Depois, vamos intimar os vizinhos, eles são importantes. Essa mãe está forçando uma barra que pode prejudicar uma pessoa, por mero capricho ou precipitação.
Você está se referindo ao fato dela não ter sido contundente, ao afirmar que a filha mencionou o nome da suposta autora?
— Exato. Lembra que o policial militar relatou, sem hesitar, que um vizinho que estava próximo ouviu a vítima dizer apenas “foi ela”? Desde quando “ela” significa Daniela, ou Gabriela, ou Rafaela? — disse Douglas, com um jeito resmungão.
Lembro. E se o vizinho ouviu isso, quiçá a mãe, que estava abraçada à filha. Eu também acho que ela forçou a barra. Mas se a Mariana não tinha outros inimigos, além dessa rival, dá até pra entender um pouco, não acha?
— Não estou descartando a hipótese, essa Daniela pode até ser suspeita... eu só não gosto de mentiras. Vamos lá garoto, estou com fome — Douglas mudou de assunto de repente.
Policiais com fome se assemelhavam a leões, foi a análise silenciosa de Luiz.
E o Doutor Leandro? Não vai mostrar a ele? — perguntou o novato.
O jovem tira é muito ingênuo mesmo, pensou Douglas, respondendo com uma gargalhada divertida:
— Não se preocupe que depois ele assina tudo. E na hora de colher os louros ele aparece.



3 comentários:

  1. Nossa! Como eu sou relapso no livro! HAHAHAHAHAHA! Tipo, ''façam o trabalho e eu colherei as honras''. =D

    Existe uma característica forte na sua trama: os personagens são muito reais! Tão próximos do nosso próprio universo que logo lembramos de algumas figuras conhecidas ou não. Muito bom, gostei deveras do capítulo! Só achei que no início a construção de alguns períodos ficou aquém do que já li, mas é um detalhe, creio, que se corrigiu com o desenrolar do texto.

    Valeu, vovó! Breve vou adquirir meu exemplar (falo sério)! ;D

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  2. Eu já conheci alguns "Leandros" como o do livro, hahahaha. Na verdade, todos os personagens tiveram bases reais, bem reais... Lógico que cada personagem é um mix de pessoas que conhecemos, uns monstrinhos (qualidade da Fulana, defeitinho do Beltrano etc).

    O primeiro capítulo foi basicamente introdutório mesmo, os demais desenvolvem melhor. Ao menos eu espero, rs.

    Ao menos dá pra perceber como escrevo, como conduzo a história, né? É uma forma de o leitor não se arriscar e comprar no escuro.

    Beijos e obrigada pelos seus comentários Lelê!

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  3. Dá sim, bastante objetividade e velocidade nos diálogos. Adorei!

    Sucesso, vó.

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