Trilha sonora

segunda-feira, 23 de abril de 2012

3º CAPÍTULO DE ORGASMOS FATAIS PARA DEGUSTAÇÃO


CAPÍTULO 3

Passou-se uma semana, já estava no mês de março e Douglas ainda não havia conseguido ouvir o casal vizinho de Mary. Eles estavam com uma pessoa doente na família e pediram alguns dias para que ambos pudessem ir à delegacia. Era uma sexta-feira, Douglas estava de folga e decidiu iniciar uma série de pesquisas, pois até então não tivera a menor vontade de ir além de seus limites. O caso Mariana era um dos 200 e poucos que tinha sob sua responsabilidade. Com mais de vinte e cinco anos de polícia, ele sabia que quanto mais se dedicasse mais se decepcionaria. Foram muitos casos concluídos com sucesso, muitos réus no Tribunal do Júri condenados com louvor, com base em suas investigações e no trabalho em equipe muito bem orquestrado que tinha com seus parceiros. Porém, também foram muitos casos arquivados por motivos diversos, sendo um deles a falta de interesse, além do medo das testemunhas, da má-vontade, entre outros.
Douglas começou a se lembrar dos tempos quando a polícia investigava pra valer, tinha mais autonomia em suas ações, os delegados não apenas vestiam terno e gravata e davam ordens sem se comprometerem com o que faziam os seus subordinados; eles efetivamente lideravam as diligências executadas pelos agentes policiais, muitos até eram mais operacionais e delas participavam ativamente. Aí, era impossível não comparar aquelas autoridades policiais, não extintas, mas escassas, com os doutores “Leandros” da vida.
Este era um rapaz ainda novo, tinha seus trinta anos não muito vividos, era nítido. Como muitos que ingressavam naquela nobre carreira, Leandro passou a vida estudando e mal saiu da faculdade de Direito, já estava fazendo cursos preparatórios para o concurso que prestara. Fora o fato de que ele não trabalhava ainda naquela época, o que lhe dava tempo de sobra pra estudar em casa. Sim, ele tinha conhecimento jurídico, sem dúvida, mas veia policial... não, ele não tinha. Infelizmente, ele não fazia parte de uma minoria e isto entristecia os policiais mais antigos, como Douglas.
Certa vez, um perito contou a Douglas e a outro parceiro, que ele havia chegado a um local de homicídio e a arma do crime era uma faca de cozinha. Por sorte, o autor não tinha se desfeito do instrumento, que foi identificado próximo ao corpo da vítima, um homem. Entretanto, em razão de um engarrafamento, os peritos haviam chegado um pouco depois dos agentes policiais, que eram liderados por uma delegada. Quando o perito chegou ao local e pediu a arma do crime para lacrar, a autoridade policial, com unhas incrivelmente bem pintadas e mãos de fada, lhe apresentou sobre um saco plástico duas facas ensanguentadas. Preocupada em não sujar as unhas de sangue, ela pegou outra faca na cozinha da vítima, para poder passar a faca utilizada no crime para cima do plástico. Só que depois, ela esqueceu qual daquelas era a arma do crime.
Douglas ria sozinho enquanto se lembrava do caso e ligou seu notebook, pretendendo intimar logo a tal da Daniela. Ele teria feito isso logo, se não estivesse assoberbado de serviço. E como não tinha muita confiança nas pessoas, não pediu a outros colegas que pesquisassem, afinal de contas, já tinha visto muita coisa errada na instituição e não queria que atrapalhassem a sua linha de investigação. Além disso, ele esperava saber mais coisas sobre Daniela através do próprio Rodolfo. Porém, devido à função comissionada que este exercia junto ao Governador, estava difícil encontrar um horário para ouvi-lo. E Rodolfo, também, não parecia fazer muita questão de ajudar, embora tivesse dito por telefone que colaboraria no que fosse preciso.
O inspetor iniciou suas buscas nos órgãos oficiais de identificação e encontrou uma Daniela Diaz Vidal, nascida aos seis de novembro de 1974. Escorpiana, ele pensou. Mas seu registro era antigo, não havia foto e ela ainda era estudante na época em que tirou sua carteira de identidade. Porém, como parecia ser a única com aquele nome e faixa etária, Douglas partiu para uma busca no clube de diretores lojistas, encontrando a mesma Daniela. Esta fizera uma compra em um estabelecimento comercial no bairro de Botafogo, há um mês. A partir desta informação ele conseguiu seu endereço atual e telefone: ela morava no bairro de Lins de Vasconcelos.
Antes de entrar em contato com a mesma, Douglas resolveu dar uma olhada em seu perfil do Facebook, mas nada de relevante encontrou ali. Decidiu procurá-la no Orkut e realmente ela tinha um perfil nesse site, com a mesma foto distante do Facebook. Ela tinha recados e fotos trancados, como a maioria das pessoas costumava fazer para manter certa privacidade. Mas, Daniela gostava de entrar em comunidades, tinha umas duzentas... e Douglas passou a olhar uma a uma, encontrando umas totalmente estilo pastelão, o que o fez pensar que aquela mulher parecia ser uma criança grande, alguém com senso de humor bastante aguçado. Entretanto, como sempre ia até o fim no que fazia, Douglas começou a perceber também que Daniela talvez não fosse tão animadinha assim. Alguns títulos de comunidades que lhe chamaram atenção foram: “Pareço legal, mas sou psicopata”, “Quero que minha rival morra”, “Desculpe, eu não tenho princípios”, “Adoro armas brancas”, “Morte aos meus inimigos”, “Frio e calculista”, “Eu não sinto culpa”, dentre outras comunidades do gênero.
— Essa mulher é maluca — disse ele para si mesmo, surpreso como uma pessoa poderia se expor tanto assim.
Outras comunidades, sobre práticas sexuais inusitadas, também figuravam na lista. Mas ele não conseguiu descobrir onde e nem em que Daniela trabalhava; ela não estava em qualquer comunidade que lhe desse uma pista. Então, Douglas resolveu telefonar para o número que constava no cadastro que havia descoberto, era um número residencial e que parecia ser realmente, pelo prefixo, daquele bairro ou adjacências.
Eram quase cinco horas da tarde e estava um calor escaldante no Rio de Janeiro. Douglas tomou uma ducha e, ainda enrolado na toalha, pegou o telefone para ligar para a tal Daniela. Deu uns três toques e logo uma voz jovem e feminina atendeu. Douglas perguntou por Daniela:
— Quem quer falar com ela?
Douglas... Daniela? — perguntou ele, acreditando falar com a mesma.
— Não, aqui é uma amiga dela. Você quer deixar algum recado?
Não obrigado. Você sabe me informar a que horas a sua amiga chega?
Bem, ela não disse... mas costuma chegar do trabalho lá pelas sete horas, no máximo.
— Então eu ligo mais tarde, obrigado.
— Por nada — a mulher tinha uma voz simpática.
— Ah, desculpe, mas qual é o seu nome?
— Pode me chamar de Kika — disse ela e deu um riso.
— “Kika”?
É. Eu vou dizer que você ligou. Douglas de onde mesmo?
— Ela não me conhece, mas pode deixar que eu vou retornar a ligação. Muito obrigado mesmo, “Kika”... Tchau.
— Tchau, tchau — ela desligou, sem demonstrar qualquer preocupação com aquele telefonema.
Mal ele desligou o telefone e este tocou, lhe dando um susto. Douglas detestava telefones, mas sabia que estes eram um mal necessário. Era Luiza, sua namorada. Ele ficara viúvo há cinco anos e desde então morava sozinho, próximo a parentes, porém não quis mais casar. Sua esposa morreu de um ataque cardíaco fulminante e em todos os anos de casamento a mesma jamais quisera ter filhos. Douglas adorava crianças, mas agora achava que já tinha passado o tempo de ser pai.
Luiza queria dormir em sua casa, mas ele não estava nem um pouco inspirado. A namorada se tornava cada vez mais enjoada, uma pessoa sem conteúdo, na verdade. O que chamava muito a sua atenção em uma mulher era sua capacidade de surpreendê-lo, de enfrentá-lo até, e Luiza estava muito, mas muito longe disto. Quando ele queria lhe contar seus casos bem-sucedidos, a namorada desconversava, parecia não entender nada do que ele falava e isto o vinha desestimulando. Estavam juntos há cerca de seis meses e em tão pouco tempo a mulher havia se tornado um estorvo. Embora ela fosse apenas cinco anos mais nova do que ele, que tinha 52, Luiza parecia uma adolescente às vezes. Ela não tinha maldade, parecia que vivia em uma bolha, totalmente alheia à realidade. E pra piorar, trepava mal.
Douglas inventou uma desculpa: disse que estaria de plantão e ela acreditou, mesmo cansada de saber que ele trabalhava em horário de expediente normal. Era incrível como ela não sabia diferenciar. Após se livrar de Luíza, ele deixou passar o tempo, enquanto assistia a um filme. Quando já ia telefonar para Daniela, o toque do telefone novamente o assustou. Luiza de novo, só podia ser. Ele atendeu, mas desta vez com a voz impaciente e ríspida:
— Alô!
— O Douglas está?
A voz era de Kika e ele estranhou.
Sou eu — respondeu Douglas e aguardou, percebendo que outra pessoa pegava o aparelho para falar.
— Oi, aqui é Daniela. Você me ligou mais cedo — a voz feminina era diferente da voz de Kika; era uma voz meio preguiçosa e um pouco rouca, porém agradável.
— Ah, Daniela! Como você descobriu o meu número?
Já ouviu falar em bina? — ela riu. — Mas, quem é você?
— Inspetor Douglas, da delegacia de homicídios.
Sim? — Daniela reagiu naturalmente. Até parecia que esperava a ligação ou que estava acostumada a receber telefonemas daquela espécie. — Quem morreu?
— Como sabe que alguém morreu?
— É meio óbvio, não? Ou alguém quase morreu, sei lá... um policial da Homicídios e que não é meu conhecido, me telefonando... Só não imagino quem bateu as botas.
Douglas riu em silêncio, pois deu pra perceber o cinismo naquela voz mansa.
— Quando podemos marcar para ouvi-la?
— Quando me disser, ao menos, por que estou sendo convocada — disse ela, com um tom de voz mais sério. — Quem me garante que isto não é um trote?
— Se preferir, eu posso intimá-la pessoalmente.
— Como queira... é só isso?
Douglas percebeu que Daniela não era, nem de longe, uma tonta.
Sim, sem problemas, eu farei a intimação então. Só mais uma coisa...
— Diga – ela disse.
— A senhora trabalha em quê?
Daniela deu um riso debochado, em tom baixo, mas o suficiente para ele ouvir. Depois ela respondeu:
— Bem, em primeiro lugar não sou senhora, sou senhorita. E depois, quando me conhecer pessoalmente, saberá mais a meu respeito, OK?
Douglas esfregou os olhos, um pouco irritado.
Está certo. Então, até mais — disse ele, contrariado, porém sem perder o controle da situação.
— Tchauzinho — ela desligou.
Douglas não gostou do jeito educado, porém petulante, de Daniela e resolveu fazer a intimação naquele mesmo dia, ou melhor, noite. Ele tinha um modelo de mandado de intimação gravado em seu computador pessoal. Imediatamente, o policial redigiu o documento e assinou seu nome no campo próprio. Ele pegou o seu carro e foi até o endereço de Daniela. Pensava durante o trajeto que talvez tivesse se precipitado, pois em plena sexta-feira ela poderia sair à noite. Mas, como já estava na metade do percurso, resolveu arriscar mesmo assim.
Ele chegou ao local e avistou um prédio de apartamentos com varandas, cuja fachada era bonitinha. Tocou o interfone e identificou a voz da amiga de Daniela, que pediu ao mesmo que aguardasse um pouco. Douglas olhou para cima, mas não viu qualquer cabecinha curiosa espiando. Passados uns três minutos, no máximo, uma moça de cabelos castanhos claros, na altura da cintura, aparentando ter uns 28 anos de idade, com cerca de um metro e sessenta de altura, seios fartos e pernas grossas e trajando um vestidinho curto na cor amarela, desceu as escadas e abriu a portaria. O prédio não tinha porteiro, Douglas reparou, e não entendeu por que não abriram pelo próprio sistema de interfone. Parecendo ler seus pensamentos a jovem disse, sorrindo:
Eu sou a Kika, lembra? O interfone está com problemas, não dá pra abrir lá de cima.
— Ficou cansada? — ele referia-se ao fato de ela ter descido as escadas correndo.
— Não, ela mora no segundo andar... é rapidinho.
Douglas, então, seguiu Kika, que subia correndo as escadas. Ela o convidou a entrar e pediu que aguardasse, pois Daniela estava saindo do banho.
Ele aproveitou para observar o local, a decoração do apartamento... queria ver se captava algo da personalidade de sua envolvida. O ambiente era aconchegante, tinha uma decoração clean, com móveis brancos ou muito claros e cortinas não muito compridas; o piso era cor de gelo e não tinha carpete ou tapete; as paredes eram pintadas em um tom de pêssego, que era o que dava vida ao ambiente, combinando com os quadros. Havia um grande na parede principal, retratando um belo sistema solar, com símbolos astrológicos e planetários, que chamaram a sua atenção. Em outra parede, um quadro menor ilustrava o que parecia ser uma corrida de carros, mas havia personagens ao redor; era algo confuso e que parecia retratar um acidente, mas ele não tinha certeza, pois olhava tudo com um pouco de pressa, antes que Daniela entrasse na sala. Em uma estante de pedra clara havia caixas de DVDs de filmes e uns dois porta-retratos discretos. Mas, quando se aproximou para olhar as fotografias, uma mulher enrolada em uma toalha branca e com os cabelos úmidos, entrou na sala, desconcertando completamente o policial.
Oh, desculpe! Achei que a Rachel o tivesse levado até a copa — ela sorriu, sem se importar em ser vista daquele jeito. — Garota bitolada.
— Tudo bem, se quiser posso esperar até se vestir — disse Douglas, sério, evitando olhá-la muito.
— Besteira, não se preocupe. Estou bem assim — ela fez um gesto indicando o sofá para o policial, que já não conseguia esconder sua perplexidade diante daquela falta de pudor. E o pior é que, mesmo instintivamente, ele começou a observá-la. Era inevitável mesmo e concluiu que era uma mulher bem bonita. Era mais alta do que Kika, cujo nome agora ele sabia ser Rachel. Daniela deveria ter uns dez centímetros a mais do que a outra, pele bem clara, olhos azuis, cabelos louros um pouco acima dos ombros e um corpo bem definido. Parecia malhar, era definida sem ser musculosa. Ele notou também algumas equimoses já esverdeadas em suas pernas e braços, mas não quis que ela percebesse. Daniela segurava uma toalha menor em uma das mãos, o que o impedia de ver se ela tinha algum ferimento naquela parte do corpo também.
Logo, ela se sentou no sofá. Douglas continuou em pé após se identificar como policial, já lhe estendendo a intimação, quando ela pediu que o mesmo se acomodasse.
— Eu estou um pouco cansada, tive um dia agitado, sabe? Deixe-me ver aqui... — ela pegou a intimação, leu e deu um sorrisinho. — Pra variar o delegado não assinou, não é mesmo?
“Pra variar?” pensou Douglas, atento. Daniela parecia saber que isso era uma constante na rotina policial.
— Não, eu estava em casa quando redigi o mandado, mas se quiser eu volto depois com a assinatura dele — Douglas já estava desanimado, imaginando que tinha saído de casa à toa, em plena sexta-feira à noite.
— Imagina, foi só um comentário – disse ela em tom compreensivo. — Rachel faz um favor, pega minha identidade! — Daniela pediu à amiga, enquanto passava recibo na outra via do mandado. Ela era observada atentamente pelo policial, que não percebia qualquer curiosidade ou nervosismo em seu semblante. — Eu não faria uma maldade dessas com um policial tão honesto, que sai na sua folga para trabalhar — ela levantou os grandes olhos para encará-lo rapidamente.
— Por que diz que sou tão honesto? Nem me conhece — Douglas achava que aquela mulher estava debochando dele e isso já o aborrecia.
— Ora... qualquer outro, na falta do delegado para assinar, teria “baixado o santo”, não é mesmo? — ela olhou nos olhos dele, séria... e quando Douglas ia perguntar como ela sabia da expressão “baixar o santo”, muito usada pelos policiais que assinavam no lugar de outros policiais ou de delegados, Rachel entrou na sala rapidamente, com a identidade de Daniela. Esta última pegou o documento e o entregou a Douglas, para que ele anotasse o número no recibo.
Bem, “senhorita” Daniela... eu agradeço a atenção e a aguardo na segunda-feira, sem falta — Douglas se levantou e caminhou em direção à porta.
Não vai me dizer por que estou sendo chamada? — perguntou Daniela com uma expressão jovial, porém indiferente.
Quando estiver sendo ouvida em sede policial, você saberá mais a respeito... OK? — respondeu Douglas, encarando-a firmemente, satisfeito por poder retrucar à altura a resposta que ela lhe dera por telefone.
Daniela apenas franziu, displicentemente, as sobrancelhas bem desenhadas e se despediu:
— Tudo bem... eu aguento até lá.
Douglas desceu as escadas com Rachel, que novamente abriu a porta do prédio. Então, curioso, antes de entrar no carro ele perguntou à moça:
— Você mora com a Daniela?
— Não, estou aqui só passando uns dias. Eu me aborreci com o meu pai e aí ela me convidou pra ficar aqui... para esfriar a cabeça, sabe?
— Claro. E sua amiga parece ser bem cabeça fria, não é?
— Nos momentos certos ela é sim — respondeu ela. E pela primeira vez a moça olhou seriamente para o policial, perdendo aquele ar ingênuo.
— Sei... — Douglas fez uma pausa. — A propósito, por que te chamam de Kika? Rachel é tão bonito.
— Porque eu acho Rachel feio — ela riu e quebrou o gelo de novo.
Então, Douglas entrou em seu carro e olhou para a varanda do apartamento, avistando Daniela debruçada. Ela ainda estava enrolada na toalha, observando ele entrar no veículo. Douglas acenou para a loura, que retribuiu o gesto, e depois ele parou no primeiro bar que encontrou, pois precisava beber algo. Douglas sentia calor e nada melhor do que uma boa loura gelada para fechar aquela noite um tanto incomum. Uma loura gelada pra apagar o fogo causado por uma loura molhada... Quente, talvez.
Enquanto isso, Daniela se arrumava e aguardava Rachel subir. Esta última estava curiosa demais para saber o que a amiga havia conversado com o policial. Rachel ficara aguardando no quarto de Daniela, enquanto esta atendia o agente. Como ambos falavam em tom baixo, Rachel não conseguiu ouvir muita coisa da rápida conversa que tiveram.
Daniela já estava vestida com um baby-doll e como não tinha nada de muito bom para fazer naquela noite — aliás, como o próprio inspetor também não tinha —, resolveu ficar em casa. Ela estava sentada em sua cama e ria enigmaticamente para Rachel, que a observava secar os cabelos. Daniela sabia que a amiga se corroía de curiosidade.
— Porra, não vai me contar? – Rachel perguntou.
— O quê?
O barulho do secador deixava Rachel mais agitada.
Quem descobriu o Brasil, cacete! — disparou ela ironicamente, recebendo uma resposta mais irônica ainda.
— Dom Pedro I... Ah não, foi aquele cara que colocou o ovo em pé... — e caiu numa gostosa gargalhada.
— Palhaça!
Bem, na verdade ele não quis adiantar nada... — respondeu enfim Daniela. — Acho que ficou contrariado porque eu o fiz vir até aqui.
— Ele tem um jeitão sério, né?
— Ele tem jeito de macho, querida — observou Daniela e deu um olhar enviesado para Rachel. — Desses em extinção, sabe?
Rachel agora também estava sentada na cama de Daniela, que bebia uma dose de uísque com gelo, enquanto a amiga bebia uma cerveja no gargalo. Kika era muito engraçada, tinha um jeito de adolescente, apesar de seus vinte e sete anos, e era muito amiga de Daniela... confidente mesmo. Sim, Daniela sabia de muitas coisas a seu respeito e nunca lhe negara ajuda em momentos difíceis, tão logo se conheceram. Problemas familiares: um irmão paterno que Rachel odiava e que teria sido a causa da separação de seus pais. Este, que havia morrido em um assalto mal explicado, há cerca de dois anos, acontecimento que gerou um mal-estar entre Rachel e seu pai. Apesar de o caso ter sido encerrado sem a descoberta da autoria do suposto latrocínio, Rachel sabia que seu pai cogitara da hipótese de a própria filha ter mandado matar o “bastardo”, como ela costumava se referir ao obeso Paulo. O rapaz, oito anos mais novo do que Rachel, era uma presença insuportável e constante em sua vida. Parecia que ele, ciente de que provocava as piores sensações na irmã, fazia questão de ser lembrado por ela. Foi comentário duradouro na família de Rachel, a reação desta quando soube da morte de Paulo: a jovem saiu para comemorar com os amigos, em uma boate badalada. Simplesmente, ela justificou sua atitude da forma mais natural possível: “eu não gostava dele, isso nunca foi segredo pra ninguém!”.
Daniela se lembrou naquele momento desse episódio. Ela gostava do jeito de Rachel, pois também era assim. Aliás, parecia que ambas gostavam muito de chocar as pessoas com suas atitudes e reações inusitadas, de falar a verdade nos momentos mais inapropriados e, talvez por isto, elas se dessem tão bem. Mas, Daniela costumava dizer para Rachel que “às vezes, mentir é preciso... é uma questão de sobrevivência!.
— Você é muito vadia, hein! O que deu na sua cabeça, pra atendê-lo enrolada naquela toalha? — Rachel chamou a atenção de Daniela.
— Ué, estou na minha casa! Se ele não suportou a cena, não posso fazer nada — ela bebeu mais um gole de uísque e riu. — Kika, ele ficou sem reação... e não sabia onde enfiar a cara. Foi hilário!
— E eu perdi isso — Kika jogou-se de costas na cama.
— Ah, e eu botei a culpa em você — Daniela apontou para Rachel.
— Em mim? Explica essa porra direito!
— Eu me fingi de desentendida e pedi que ele me desculpasse, porque era pra você tê-lo levado até a copa, oferecido um café, sabe como é... Mas eu acho que ele não acreditou — disse Daniela, tendo uma sucessão de risos, acompanhada da outra, que também se divertia com a situação.
— Quando é que você vai depor? — perguntou Rachel, virando-se de bruços rapidamente e olhando curiosa para a amiga.
— Na segunda-feira.
— Já? Ele está na gana mesmo, hein.
— Problema dele! Eu não estou nem aí. Mas é melhor porque já resolve logo, entende? Ele parece ser um policial sério. E dos bons — ela brincava com o gelo dentro do copo.
Eu vou dar uma saidinha... você vai ficar de “molho” em casa?
Vou. Hoje eu não estou a fim de badalação. Você vai se encontrar com a Deborah?
— Provavelmente.
— Não se esquece de pegar o DVD com ela, tá?
— E você acha que eu iria esquecer? — Rachel arregalou os olhos, mostrando tanto interesse quanto a outra no assunto.
— Não, claro que não. Mas é que eu quero guardar logo. Você sabe que a Deborah não é lá muito cuidadosa em guardar as coisas e algo me diz que vou precisar daquele vídeo tosco. — Daniela fez uma careta e riu.
Você sabe que se precisar usar pode dar merda, não sabe?
— Quem mandou ele ser burro? E outra coisa: você sabe que odeio que me ameacem e ainda mais em se tratando de um imbecil daqueles. Só vocês duas mesmo pra encarar aquele projeto de homem!
— Ah, já foi... fazer o quê? Me deixa ir, que meu gostoso está me esperando — disse Rachel, referindo-se ao namorado.
— Divirtam-se — desejou Daniela. Ela esperou a amiga sair e se deitou, sem conseguir pegar no sono. Estava apreensiva, pois não sabia o que teria que encarar dali pra frente. Mas, ao mesmo tempo, situações inusitadas como aquela a faziam vibrar. Daniela precisava sempre de algo em sua vida que a tirasse do tédio, ela gostava de fortes palpitações. Porém, ela precisava dar uma relaxada, esfriar bem a mente e, normalmente, fazia isso de duas formas: dormindo ou indo à praia. Como o sono não vinha logo, ela se adiantou e começou a arrumar sua bolsa de palha para passar o tempo; pretendia curtir o mar na tarde do dia seguinte. Daniela gostava de olhar o pôr-do-sol e, além disso, como tinha a pele muito clara, preferia o sol “moribundo”, como costumava dizer.
Enquanto arrumava sua bolsa, Daniela não poderia imaginar que certo policial também não conseguia dormir. Ou poderia? Fato é que Douglas estava muito mais dedicado a trabalhar naquela investigação agora, embora não tivesse parado para se perguntar por quê. Era mais um homicídio em sua carreira; e ele já havia solucionado tantos outros, até mais violentos, pelos mais variados motivos. Não havia nada ali de tão diferente: uma  bela vítima, uma inimiga apontada ferozmente, por familiares da primeira, como sendo a autora, uma arma do crime desaparecida, falta de recursos de trabalho, testemunhas escorregadias, alguns colegas desinteressados — se bem que Luiz era interessado, mas era só um garoto ainda.
Douglas estava acostumado com colegas mais experientes, que desenvolviam uma linha de investigação coerente e completavam o seu trabalho. Luiz, por sua vez, estava em sua fase embrionária na polícia, o estágio probatório. Além de nenhuma experiência, ele tinha medo de tomar atitudes, pois sua situação no cargo ainda não era estável e ele contava com o mesmo, já que estava prestes a se casar. Mas, ao menos, ele era esforçado. E, ao contrário do delegado Leandro, não atrapalhava o bom andamento das investigações.
E Douglas seguia a noite sem conseguir dormir, mesmo após ter bebido tanto. Como o sono não vinha por nada, ele aproveitou para fazer suas pesquisas. O policial procurou informações sobre o namorado da vítima, o que não foi muito difícil de encontrar. Sem anotações criminais e aparentemente uma pessoa comum, exceto pelo fato de estar ligado a uma autoridade política estadual, formado em Direito e Jornalismo, Rodolfo tinha 57 anos de idade. Isto chamou a atenção do policial, já que o assessor do Governador namorava uma mulher mais nova do que ele vinte e cinco anos.
Ele tinha uma história interessante: quando jovem, chegou a ser sequestrado pelos militares, juntamente com jornalistas formados e esquerdistas atuantes, quando ainda era um estagiário. Pelo que Douglas leu naqueles arquivos, Rodolfo não chegou a passar por torturas ou algo assim, mas parecia ser um profissional politicamente correto e cheio de ideais. Ao menos em tese.
Douglas não queria se aprofundar muito na história de Rodolfo naquele momento, pois ainda teria que conversar com outras pessoas. O caso estava só começando e ele sabia que a paciência era fundamental para se chegar a um resultado positivo. O mal de muitos colegas era a precipitação, os “adoradores de bodes-expiatórios”, como ele costumava defini-los. Prender um inocente poderia ser algo tão ou mais violento e injusto do que o próprio crime, pois o responsável por tamanho equívoco, ainda que de forma inconsciente e involuntária, acabava se tornando um cúmplice do culpado. Isto era tudo o que Douglas mais abominava: ajudar a absolver um culpado, à custa da liberdade de um inocente.
Ele também não sentia muita veracidade no que a mãe da vítima lhe dissera. Douglas precisava confirmar com os vizinhos que presenciaram a cena. Havia algo naquela mulher, uma senhora loura, bonita e bem conservada, que se vestia como uma mulher mais jovem, que incomodava muito o inspetor. Era evidente que ela sofria muito com a morte da filha; mas ao mesmo tempo dava a impressão de que queria vingança e não justiça, se é que poderia existir uma diferença substancial entre uma coisa e outra. Douglas analisava os fatos e tinha certeza de que Isadora estava mentindo, provavelmente para proteger algo que envolvia a memória ou a reputação de sua irmã mais velha. Não que isto fosse algo assim tão grave, mas ele sabia que não existiam mentiras inocentes, principalmente em uma investigação criminal.
E havia também a apontada suspeita: Daniela... que mulher estranha... ele se lembrou dela, comparando sua atitude inicial ao telefone, séria e fazendo questão de uma intimação formal... depois, já em seu apartamento, atendendo um agente policial, enrolada numa toalha e ainda toda molhada.
— Ô estranha gostosa! — ele disse em voz alta, como se conversasse com um amigo imaginário. E Douglas começou a reconstruir a imagem da mulher loura, que naquela ocasião estava descalça; ela era mais baixa do que ele uns cinco centímetros e tinha formas muito bem feitas... voluptuosas até. Sem dúvidas, era bastante feminina. Ele achou seus pés bonitinhos; na verdade, ela tinha pés muito bem feitos e usava tornozeleira, o que valorizava aquela área de seu corpo, feia na maioria das pessoas.
O seu lado homem nunca adormecia. Ele pensava: mas até um defunto levantaria, diante daquela cena que eu presenciei! E a toalha era curta, pra piorar. Porém, o lado policial parecia brigar em pé de igualdade com seus instintos mais primitivos. Imediatamente, ele se lembrou das equimoses que vira nas pernas e braços de Daniela. Eram em pontos variados, não parecia que ela tinha batido em algum móvel ou algo assim. Foi inevitável para ele imaginar que ela tivesse entrado em luta corporal com alguém. Ele se lembrou de que a vítima tinha um metro e oitenta de altura e não era magrinha, mas estava recém operada. E, apesar de ser grande, Mariana não parecia ser adepta de exercícios físicos como Daniela.  Esta, embora menor, talvez fosse mais disposta a um combate. Ele viajava em seus pensamentos... Mas, tais especulações eram pouco prováveis, já que o perito praticamente garantiu não ter havido luta no local do crime.
Definitivamente, Douglas não teria muito que fazer naquele final de semana, a não ser esperar. E tudo o que ele fazia ultimamente          na sua vida era esperar. Esperava por muitas coisas: um filho que não veio, melhorias em sua profissão, conseguir parar de fumar, encontrar um amor de verdade... Enfim, há tempos ele apenas esperava.

2 comentários:

  1. Excelente capítulo! Confesso que estou muito curioso com o livro, Fernanda; certamente, é mais um na mira dos meus olhos... Sucesso, sucesso e sucesso pra você. 1 abração meu,

    the ^.^ Osmar

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