DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS
HUMANOS/ONU:
Art. 3º: Toda
pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Art. 4º: Ninguém
será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos
serão proibidos em todas as suas formas.
Pois é, pois
é, pois é... pena que, na prática, seja letra morta.
***
Um dos temas abordados em meu segundo romance
policial, O Reverso do Destino, é o tráfico internacional de mulheres. Na trama
o leitor irá se deparar com situações em que as ambições desmedidas, tanto das
vítimas quanto de seus aliciadores, levam aos extremos do crime, incluindo
homicídios. Entretanto, procurei não entrar em muitos detalhes para não deixar
o enredo pesado e/ou técnico demais, dando apenas as coordenadas mais básicas
necessárias à construção do suspense.
É vergonhoso – e
assustador – pensar que a escravidão persiste nos dias atuais e que jamais fora
abolida de fato. O diferencial está nos motivos que levam um ser humano a
reduzir outro semelhante à condição de res
(coisa) e angariar vantagens econômicas e pessoais com isto. Na antiguidade clássica
os escravos eram espólios de guerra ou então frutos de dívidas não honradas. Depois,
no colonialismo, os navios negreiros sequestrando africanos para trabalhos
braçais eram a prova de que o tráfico negreiro consistia em uma das principais
atividades de comércio da época, fato histórico bastante familiar para nós
brasileiros.
Na época
contemporânea o número de países “fornecedores” ou de origem de pessoas
traficadas é de 127; em contrapartida, o número de países “consumidores” ou de
destino são 137! Alarmante, não? E triste é saber que o nosso país participa
ativamente desses números, se enquadrando como um alto país fornecedor e baixo no
quesito destino de pessoas traficadas. Ou seja, do Brasil saem futuros escravos
para os países de 1º Mundo.
O que você deve
estar se perguntando, em um primeiro momento, é como se dá o esquema delituoso,
quais são os artifícios e modus operandi
utilizados pelos criminosos. Bem, podemos colocar da seguinte maneira:
a) captação das
vítimas, que consiste na escolha e abordagem;
b) traslado;
c) acolhimento;
d) recepção.
Estas seriam as
etapas que podem ocorrer de diversas formas. Os traficantes de pessoas usam de
diversos artifícios, tais como ameaças ou outras formas de coagir, violência
física, sequestro, fraudes, abuso de poder etc. O crime em questão pode assumir
feições transnacionais (quando a vítima é transportada de um país para outro)
ou nacionais (quando a vítima é deslocada dentro do próprio território nacional).
O enfoque desta matéria é o tráfico internacional, porém alguns comentários
sobre o tráfico interno são inevitáveis.
Para se traçar o
perfil do traficante de seres humanos, precisamos entender o que leva um
criminoso a optar por esta modalidade de delito. E são duas razões simples,
logo de início: é um crime de riscos baixos e que gera lucros muito altos.
Segundo dados da UNODC este crime movimenta 32 bilhões de dólares por ano e, em
média, o lucro por pessoa é de cerca de R$ 30.000,00. Pra completar, é o tipo
de crime difícil de se combater, já que seria necessária a união e organização
de todas as esferas da Segurança Pública, nacional e internacional, para
dizimar as quadrilhas. Se cada esfera, por si só, tem problemas internos de
união e de organização, dá pra imaginar a dificuldade a que me refiro. Com 8
mil pessoas no mundo levadas a julgamento apenas 2,8 mil foram condenadas. Logo,
é perfeitamente compreensível que a impunidade se torne sedutora para os delinquentes.
Embora a maioria
dos traficantes seja do sexo masculino, esta maioria não é esmagadora, porque
muitas mulheres participam ativamente da atividade criminosa. O perfil da
traficante nos leva a mulheres mais maduras, o que é intencional, já que elas
conseguem atrair e convencer as vítimas mais jovens, em razão da imagem crível
e segura que transmitem. Ambos os perfis (masculino e feminino) geralmente
possuem nível de escolaridade elevado. Sendo o tráfico a nível internacional, a
escolaridade acima da média é praticamente uma exigência. Os piores e mais perigosos criminosos não estão nas favelas, tampouco são vítimas da sociedade. São movidos pela própria amoralidade e ganância e passam despercebidos aos olhos da lei e das autoridades... passam mesmo? Bem, continuando...
Depois de
chegar ao seu destino, a vítima é escravizada de diversas maneiras (ameaças,
violência física, retenção de passaporte...) e terá que servir aos criminosos,
cujos propósitos variam. Sendo o comércio de órgãos humanos um tema tão
complexo quanto o tráfico de pessoas, não mencionarei aqui as hipóteses de
traslado de pessoas para remoção de órgãos, pois me estenderia demais. Em outra
ocasião abordarei o tema.
Temos três tipos
de crimes mais frequentes, ligados ao tráfico humano, a saber:
a)
Crianças-soldado: menores de idade recrutados à
força para lutar em guerras. Essas crianças são treinadas com armas de fogo de
grande porte, armas brancas, bem como explosivos. Foi na África onde surgiu
esta prática criminosa e é de lá que vem a maioria das crianças. A idade mínima
já registrada foi de crianças com 7 anos de idade e muitas nem completaram 10
anos ao se tornarem testemunhas ou agentes de atos atrozes, que podem ser
praticados até mesmo contra seus próprios familiares. E isto não é acidental,
porque uma das formas de iniciação dessas vítimas é ter que matar um ente
querido. No caso das meninas, elas ainda são usadas como escravas sexuais.
b)
Turismo sexual: esta é a modalidade que mais
capta vítimas, pois 92% dos casos de tráfico humano se destinam à exploração
sexual. As vítimas aqui, em sua maioria, são do sexo feminino, menores de idade
e de classes sociais variadas. Os homens também são vítimas, principalmente
quando são crianças que moram nas ruas. Estes nem precisam ser coagidos, pois
sua própria condição social os mantém a mercê dos criminosos. No caso de
travestis, a Itália seria um dos usuais países de destino.
Normalmente a
captação se dá através de uma oferta de emprego vinda do traficante, que
descreve algo irrecusável, “a chance da sua vida” (trabalhos como modelo, por
exemplo) ou até mesmo arranjos de casamentos com estrangeiros. Tais ofertas podem ser através de anúncios em
jornais, revistas, ou até mesmo através de abordagens pessoais, inclusive por
indicação de pessoas conhecidas. Garotas de programa também costumam ser
procuradas e neste caso o traficante nem precisa florear muito sobre o suposto
emprego, já que as vítimas aceitam se prostituir, como já fazem em seu país. Após
o transporte, a situação verdadeira se revela e a vítima é obrigada a trabalhar
como garota de programa e sua liberdade se esvai. O traficante retém o
passaporte da vítima e diz que ela só obterá o documento de volta quando pagar
a dívida que contraiu e que diz respeito aos custos da viagem. Ex-escravas que
conseguiram escapar de seus cativeiros relatam dívidas iniciais em torno de R$
50.000,00. Elas contam também que eram ameaçadas dia e noite pelos traficantes,
algumas sofrendo violência física e sexual, e tendo que trabalhar diariamente
das 18h às 06h. São proibidas de circularem pelas ruas sozinhas, bem como de
falar com vizinhos. Isoladas em outro país, muitas vezes mal falando o idioma
local, sem amigos ou conhecidos, elas entram de cabeça no álcool e nas drogas,
como uma forma de esquecer a escravidão e a quase impossível libertação. Pois,
mesmo quando conseguem juntar os valores das astronômicas dívidas, os
criminosos não as liberam.
Algumas pessoas
podem questionar a questão da escravidão sexual e prostituição e dizer que as
vítimas sabiam o que as aguardava, como no caso das garotas de programa. De
fato, algumas mulheres vão para outros países, em especial os da Europa, com o
intuito de se prostituírem. Mas, ninguém em sã consciência espera se tornar
escravo em outro país! Realmente, existem prostitutas latinas e de outros
continentes na Europa, mas não escravas. Qual a diferença? A prostituta está
ali por escolha e, desde que não dê um golpe em seus agenciadores, se demite
quando quiser (ou alguém ainda acredita que os cafetões e cafetinas não abrem
mão de suas “funcionárias”? Gente, isto não existe! Eles querem rotatividade de
mulheres para seus clientes, portanto, isto é um mito). Já a escrava sexual,
esta não tem escolha. Ela pode não dever mais nada aos traficantes e mesmo
assim não terá sua liberdade. Até porque, eles sabem que serão denunciados por
um crime grave, assim que a vítima estiver fora de seu alcance, e não correrão
o risco. Em casos extremos, quando as mulheres não aguentam mais e se rebelam
pra valer, acabam encontrando uma morte violenta.
c)
Trabalho escravo: este crime é mais comum nos
continentes africano e asiático, onde a mão-de-obra de crianças e adolescentes predomina.
A forma de captação não difere dos crimes acima: as vítimas recebem boas
propostas de emprego, mas na verdade são remanejadas para fábricas, carvoarias,
dentre outros. As condições de trabalho são precárias e desumanas e as dívidas
também existem, obviamente.
O traficante de
pessoas não age sozinho, até porque é o tipo de atividade criminosa que, por
sua própria natureza, exige a participação de várias pessoas para a divisão das
tarefas. E em se tratando de um crime em
grupo, que movimenta altíssimas somas de dinheiro, as organizações criminosas
precisam justificar de alguma maneira seus lucros. Aí entra outra etapa do
crime, que é o “branqueamento” do produto da atividade ilícita, também
conhecida como Lavagem de Dinheiro.
Eu fico
imaginando o desespero de quem está numa situação de escravidão, sentindo-se
impotente e um fantoche nas mãos de covardes que sequer deveriam ser
considerados seres humanos. Quanto aos casos em que as vítimas são levadas à
força, estes são mais difíceis de se evitar, mas em se tratando de fraudes,
promessas, prestem mais atenção nas propostas “irrecusáveis” que vêm de pessoas
que você jamais viu em sua vida. Sabe aquela história de muita esmola e santo
desconfiado? Pois é, vamos desconfiar mais. Propostas assim escondem, no
mínimo, um estelionatário. Os captadores são carismáticos, em sua maioria se
vestem bem, se expressam bem e têm boa aparência. Do contrário, as vítimas não
cairiam tão facilmente nos engôdos.
Finalizando, o
registro policial de desaparecimento é o início do caminho que pode levar à
investigação de um crime dessa natureza. Os inúmeros casos de pessoas
desaparecidas retratam homicídios, sequestros, pessoas que perdem a memória e o
tráfico de seres humanos. Toda e qualquer informação deve ser dada à polícia,
mesmo que pareça não ter a menor importância. Não se omita. Se você, por
exemplo, ouviu de uma amiga que ela recebera uma proposta incrível de emprego
no Exterior e depois sumiu sem dar notícias, testemunhe. Às vezes, um pequeno
detalhe faz toda a diferença em uma investigação. Não se cale, a vítima poderia
ser você. Quanto ao Estado, que tal fazer fiscalizações decentes nos
aeroportos? Desde quando atribuições da Polícia Federal, como emissões de
passaportes, podem ser delegadas a contratados provisórios, pessoas mal
remuneradas e sem qualquer vínculo com a função que estão exercendo
indevidamente? Afinal de contas, as vítimas não chegam a outros países via
teletransporte, não é mesmo? E as autoridades não se dão conta disto? Ou seria
o contrário?
Prefiro não comentar!
Fê, esse post é bem interessante e útil. Diferente do que eu imaginava o tráfico nacional está praticamente na nossa cara e não vemos.
ResponderExcluirJá me interessei pelo seu novo livro. Estou virando sua fã.
beijos
Debby, muito obrigada! Quando a editora me entregou o blog minha intenção não foi me prender somente à Literatura em si, mas tentar, de alguma forma, esclarecer mais as pessoas sobre assuntos do "submundo".
ResponderExcluirFãs em reciprocidade, rsrsrs. Esqueceu que eu já li um conto seu e que gostei?
Depois eu comento lá no Face também e compartilho o link do seu blog.
Beijos!
:D
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